Malucos são pacientes perfeitos. Eles falam e ninguém ouve.
O QUE DÓI: dos sentidos da dor ao sentido do sofrimento — Parte IV
PARTE IV: A DIMENSÃO PSICOLÓGICA-MENTAL-SENTIMENTAL-PERCEPTIVA
Lembra do Biro? (se não, volte uma casa e leia a “Parte III”) ou todas…
Neurociência e Logoterapia O QUE DÓI: dos sentidos da dor ao sentido do sofrimento — Introdução
Quanto maior a sensibilidade, maior o sofrimento... O QUE DÓI: dos sentidos da dor ao sentido do sofrimento — Parte I
O cérebro que não sentia dor O QUE DÓI: dos sentidos da dor ao sentido do sofrimento — Parte II
Uma Verdadeira Dor O QUE DÓI: dos sentidos da dor ao sentido do sofrimento — Parte III
Em 1996, ele descobriu que tinha uma doença rara da medula óssea, a hemoglobinúria paroxística noturna
— nunca tentei, mas dizem que se você falar isso às 3 da manhã, em frente a um espelho, algo muito legal acontece.
David Biro foi tratado com um transplante de medula óssea de uma de suas irmãs. Isso o levou a escrever sobre sua experiência que o levou de médico para paciente, e como isso mudou seu trabalho enquanto médico.
Ainda baseado nessa experiência, escreveu seu segundo livro The Language of Pain: Finding Words, Compassion, Relief (A Linguagem da Dor: Encontrando Palavras, Compaixão e Alívio), onde discute o uso da linguagem para expressar a dor.
Esse trabalho é interessante para discorrermos sobre o trecho da obra de Viktor Frankl.
“A dor física causada por golpes não é o mais importante por sinal, não só para nós, prisioneiros adultos, mas também para crianças que recebem castigo físico! A dor psicológica, a revolta pela injustiça ante a falta de qualquer razão é o que mais dói numa hora dessas. Assim é compreensível que um golpe que nem chega a acertar eventualmente pode doer até muito mais.”
O que Viktor sentia durante os acontecimentos que relata era mesmo “dor”?
Certamente ele pensava que sim e usou propositalmente este termo para nomear o que sentia, Frankl era médico — com dupla titulação: neurologista e psiquiatra — afinal.
Segundo Biro,
“A evidência subjetiva da existência de dor emocional1 é convincente, especialmente porque não há uma maneira objetiva de verificar e caracterizar a dor de outra pessoa. Embora possamos anexar uma pessoa a um aparelho de ressonância magnética funcional (fMRI), observar o fluxo sanguíneo para centros de dor no cérebro e, em seguida, inferir sua presença, o único teste definitivo é a palavra de uma pessoa: sinto dor ou não.”
Com isso, percebemos: 1. o caráter subjetivo da dor; 2. a difícil missão de definir o que ela é realmente, e o mais importante: 3. o quanto a linguagem pode nos revelar a verdadeira realidade por trás desse fenômeno complexo.
A metáfora, frequentemente utilizada por pessoas que sentem algum tipo de desconforto ou sofrimento, como por exemplo: “tenho um buraco no peito”; ou “parece que estou sendo rasgado por dentro”; ou “parece que minha mente vai explodir”, fornece-nos uma chave para compreender melhor esse fenômeno, possibilitando uma definição e auxiliando no diagnóstico.
Em seu artigo Is There Such a Thing as Psychological Pain? and Why It Matters (Existe Algo Como Dor Psicológica? E Por Que Isso Importa)2 — mencionado na Parte III —, Biro faz uma interessante ponderação:
“Se o dano tecidual não é necessário para sentir dor e se há um centro afetivo especial no cérebro dedicado a esse sentimento, por que esse centro não pode ser ativado por outros meios que não a via do nociceptor? Por que não é possível que estímulos psicológicos nocivos – estímulos que ameaçam o bem-estar emocional de uma pessoa, como a perda de um filho ou a dor da depressão ou o sofrimento de pacientes com câncer – encontrem seu caminho para o giro do cíngulo anterior, fazendo-nos sentir da mesma forma que sentimos quando experimentamos dor física?”

“Querida dor que me perfura o peito e esvazia minh’alma”
A mente influencia o corpo ou o corpo influencia a mente?
Categoricamente, os dois! É uma via de mão dupla.
Contudo, chegou o momento de aprofundarmos um pouco no quebra-pau filosófico.
Em 1664, Descartes foi o pioneiro em sistematizar a dor. O filósofo francês via o corpo humano como uma máquina e descreveu que
“Ao encostar o pé em uma chama acesa, as partículas de calor penetravam por nossa pele e eram levadas até o nosso cérebro através de um fio condutor. No cérebro, abriam uma cavidade e liberavam os espíritos animais, que iam até os músculos, gerando o movimento necessário para afastar a perna da causa da dor.”
Curiosa explicação, não?
Todavia, Descartes não estava completamente equivocado. Sensores em nossa pele são estimulados pelo calor do fogo. Através de uma rede de neurônios, transmitem a informação à medula espinhal, que se comunica diretamente com o cérebro, onde a dor é processada e interpretada. É por isso que sentimos
a dor.
Sobre a dualidade mente-corpo, o português António Damásio — filósofo contemporâneo e neurocientista — apresentou sérias críticas à visão dualista de René Descartes.
Descartes defendia uma distinção nítida entre mente (res cogitans) e corpo (res extensa), sugerindo que a mente era uma entidade imaterial separada do corpo físico.
Damásio, por outro lado, argumenta que essa separação não reflete precisamente a complexidade da experiência humana.
Indignado, o português escreveu até um livro para registrar tamanho desagrado pela teoria do francês.
Em sua obra “O Erro de Descartes”, Damásio despeja toda sua desaprovação referente ao modelo dualista-cartesiano. Uma obra interessantíssima, aliás.
Elenco aqui os três principais pontos da crítica:
Integração mente-corpo: Damásio destaca a importância da integração mente-corpo, argumentando que a mente não é uma entidade separada, ela, na verdade, está intrinsecamente conectada ao corpo. Ele baseia suas ideias na evidência neurocientífica, enfatizando como as emoções e os processos cognitivos estão ligados às atividades cerebrais e do sistema nervoso.
Neurobiologia das emoções: ele argumenta que as emoções não podem ser dissociadas do corpo, pois as reações emocionais estão diretamente ligadas a respostas fisiológicas e neuroquímicas, como as alterações no sistema nervoso autônomo e no eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HPA), que regula o estresse e outras respostas homeostáticas.
Papel do corpo nas decisões racionais: ele destaca casos em que a falta de conexão emocional devido a danos cerebrais prejudica a capacidade das pessoas de tomar decisões eficazes. Isso sugere que as emoções desempenham um papel vital na tomada de decisões racionais.
Parece que não somos assim tão racionais quanto pensamos, nem mesmo quando pensamos agir apenas racionalmente…
Damásio estudou pacientes com lesões cerebrais e observou que danos em áreas específicas do cérebro podem afetar a capacidade das pessoas de sentir emoções ou tomar decisões.
Essas observações questionam a ideia de uma mente separada que não seria afetada por alterações no corpo.
É interessante notar, através dessa breve recapitulação, como a dor, uma experiência sensorial misteriosa e incompreendida, começou a ser sistematicamente estudada e associada à anatomia e à fisiologia do organismo.
Mas, deixando de lado o arranca-rabo filosófico, fato é que
mente e corpo se influenciam mutuamente.
E por que saber isso é importante?
Entender que as emoções tem a capacidade de sobrepujar a capacidade racional humana gera um alerta de que uma pessoa sob o efeito de dor pode ter suas capacidades mentais comprometidas.
Logo, essa visão de corpo e mente como sendo independentes um do outro é o que gerou concepções equivocadas de que existe dor puramente psicológica, ou seja, a noção de que esse tipo de dor está somente na cabeça do paciente
.
Uma infeliz consequência disso é que
durante um bom tempo, essa percepção levou ao descaso médico e ao tratamento do paciente como sendo louco.
Visão Leiga vs. Profissional
Enquanto pessoas comuns, como Dan Vento, que sofreu a perda de sua filha, e figuras como William Styron e Joan Didion (todos citados no artigo de Biro), usam a palavra “dor” para descrever experiências como luto, depressão ou trauma, a maioria dos profissionais (cientistas e médicos) tradicionalmente discorda. Para eles, a dor é estritamente um fenômeno físico, causado por lesão corporal detectada por nociceptores (receptores de dor) que sinalizam ao cérebro. Sentimentos como tristeza profunda ou angústia, para os profissionais, não são “dor” real, mas sim “sofrimento” ou “angústia”, e não são mencionados em esquemas de classificação médica da dor. A dor psicológica é frequentemente considerada uma metáfora.
Analisando as evidências
Evidência Subjetiva
A evidência subjetiva mostra que as pessoas usam a palavra “dor” para experiências emocionais adversas e a descrevem da mesma forma que a dor física, frequentemente usando a “metáfora da arma”.
A dor física é descrita com termos como “latejante”, “perfurante”, “queimando”, “esfaqueando”, que implicam um objeto semelhante a uma arma.
Pessoas com dor psicológica usam as mesmas metáforas: Dan Vento descreveu sua perda como uma bomba que explodiu dentro dele ou parasitas comendo seus órgãos, deixando-o “esvaziado”. Joan Didion descreveu o luto como ondas gigantes que a “atingiam”, e Kay Redfield Jamison, com depressão maníaca, usou a metáfora de uma centrífuga gigante explodindo em sua mente.
Essas descrições revelam uma estrutura de sentimento compartilhada: a sensação de que um objeto parecido com uma arma está ameaçando ou ferindo, com o desejo de escapar ou se proteger.
Evidência Objetiva (Neurociência)
Há evidências crescentes de que a dor psicológica compartilha substratos neurais com a dor física.
A International Association for the Study of Pain (IASP), embora sua definição de dor se associe a dano tecidual, concede que as pessoas relatam dor por razões puramente psicológicas e que esses relatos devem ser aceitos como dor, pois não podem ser distinguidos de casos com causa física.
No entanto, a IASP não inclui a dor de luto ou depressão em seus esquemas de classificação.
Principais impactos negativos da visão estreita (objetivista e dualista)
Mesmo após os avanços da neurociência e medicina do dor obtidos na última década, os impactos da visão estreita e objetivista da dor ainda podem ocorrer e ser prejudiciais quando avaliadas por parte de alguns profissionais que podem estar desatualizados.
Então é bom que você leitor tenha conhecimento para saber avaliar ou perceber a imperícia clínica, caso se depare com alguma situação que revele o desconhecimento do profissional, sendo capaz de avaliar casos como:
• Desvalorização e estigma: essa mentalidade, que permeava a consciência cultural até poucos anos atrás, fez com que aqueles que sofrem sem corroboração física (sem lesão detectável) parecessem suspeitos, loucos (mentalmente doentes), enganosos ou fracos. Eles eram direcionados a psiquiatras ou padres, em vez de médicos ou especialistas da dor. É importante esse conhecimento também por parte dos psicoterapeutas.
• Subestimação da intensidade: segundos os estudos, a dor psicológica é frequentemente mais intensa e perigosa do que a dor física. Assim, como no trecho da obra de Viktor Frankl em análise, no artigo referido, Dan Vento sentiu que a dor da perda de sua filha era pior que a dor de pedras nos rins. Lucy Grealy preferia a dor do câncer à dor da deformidade e solidão. As taxas de suicídio são significativamente mais altas em casos de luto e depressão do que em dor física — na próxima edição adentraremos nos aspectos da dimensão social, e então analisarei alguns dados referente a essas taxas.
• Limbo para a dor crônica: pacientes com condições de dor crônica como enxaqueca, dor lombar e fibromialgia ficavam em um “limbo”, pois sua dor é física, mas muitas vezes sem lesão detectável, considerava-se mais como uma espécie de sofrimento psicológico. Isso levava ao ceticismo de médicos e familiares e, em alguns casos, até à automutilação dos pacientes para “legitimar” a sua dor. Imagina sentir a dor, e seu corpo também, contudo, ao tentar explicar a sua realidade, ninguém acreditasse em você? Isso certamente colocaria o paciente em dúvida sobre a sua própria sanidade!
“Malucos são pacientes perfeitos. Eles falam e ninguém ouve.” — Ilha do Medo
Imagine que o sofrimento causado pela dor, a falta de entendimento do paciente e dos médicos sobre as dimensões da dor crônica e, principalmente, da interação corpo-mente, faziam com que os pacientes fosses afetados emocionalmente e com isso tivessem prejuízos cognitivos. Condição que pode levar os pacientes a terem comportamentos impulsivos em meio ao desespero de não conseguir solucionar seu problema e ainda serem vistos como mentirosos ou delirantes.
Felizmente, com os avanços da neurociência e medicina da dor, especialmente na última década, juntamente com a atual facilidade de adquirir e compartilhar informação, a tendência é que casos semelhantes sejam cada vez mais raros.
…
Gostou de saber que existe um diálogo interno entre seu corpo e sua mente, um influenciando o outro o tempo todo?
Até aqui a relação se concentrou na subjetividade do indivíduo e sua relação consigo mesmo.
A partir da próxima edição, entraremos no domínio exterior ao indivíduo e aprenderemos sobre o poder do ambiente em nós.
Até breve.
Curadoria:
Filme:
“Ilha do Medo” (Shutter Island, 2010)
Ilha do Medo acompanha a história de dois agentes federais Teddy Daniels (Leonardo DiCaprio) e Chuck Aule (Mark Ruffalo), que vão a um hospital psiquiátrico isolado em uma ilha para investigar o desaparecimento de uma paciente acusada de um crime grave.
Conforme avançam na investigação, eles enfrentam um ambiente opressivo, segredos obscuros e eventos que desafiam sua percepção da realidade.
O protagonista começa a ter visões e lembranças perturbadoras ligadas ao seu passado, o que o leva a questionar sua própria sanidade.
Sob a perspectiva da neurociência, ele ilustra como o cérebro processa e, por vezes, tenta proteger o indivíduo de dores emocionais intensas, modulando memórias e emoções.
Pelos olhos da Análise Existencial e Logoterapia, o filme nos convida a considerar que encontrar um propósito pode ser fundamental para enfrentar e transcender a dor interna.
Ao misturar suspense e drama psicológico, o filme explora temas como trauma, culpa e a complexa relação entre mente e realidade, culminando em um final que deixa em aberto a linha entre verdade e ilusão.
Se você leu até aqui, você faz parte de 03,14% das pessoas que eu considero um pouquinho mais nesse mundo. Meus sinceros agradecimentos. Prazer em lhe ser útil.
Espero que, até este ponto, você já tenha compreendido a diferença entre dor enquanto sensação, dor emocional e dor sentimental — ou mental/psicológica.
BIRO. D. Is there such a thing as psychological pain? And why it matters. Cult Med Psychiatry. 2010 — DOI: 10.1007/s11013-010-9190-y